TEXTO I
Cheio de gargalhadas. Coisa de um ano atrás. Impossível não notar. Ele estava no jardim do clube, os antebraços fincados na grama bem tratada, e as pernas atléticas, eretas, apontando para o céu azul, sem nenhuma nuvem, “uma posição invertida de ioga”, conforme explicou quando se juntou a mim na piscina. “O sangue faz uma espécie de roto-rooter nos nossos vasos sanguíneos”, disse ele, entre dois breves mergulhos, “... bota fora um montão de coisas podres”.
Meu trabalho era lidar com afiadas lanças de ódio e imensos volumes de ignorância. Se eu me virasse de cabeça para baixo, pensei, vomitaria arsenais nucleares e arame farpado.
– Do que você está rindo? – perguntou ele.
Eu não estava rindo. Minha fotofobia, aumentada pela falta de óculos de sol, me deixava com aquele simulacro de sorriso pregado no rosto.
Ele se chamava Amir e vivia no meu mundo, era advogado como eu, mais velho que eu, divorciado, e agora eu descobria que éramos sócios do mesmo clube recreativo do bairro de Pinheiros.
No fórum, muitas vezes eu assistira ao seu desempenho na acusação de criminosos anônimos, com uma oratória sólida, impactante. Notável.
Ali na água, sem o terno nem os assassinos que destruía e apesar dos dentes que poderiam ser melhores, ele me pareceu ainda mais sedutor. Na verdade sob aquela luz radiante, o que eu via era um tipo bem insólito: promotor iogue, com tese de doutorado em Wittgenstein, e capacidade para plantar bananeira semelhante à de um acrobata de circo.
Meia hora de conversa, e eu já me sentia à vontade.
Depois de nadarmos, continuamos nosso papo, falamos sobre seus criminosos, e a filosofia que o interessava especialmente. Contei sobre minha tentativa de ler Investigações lógicas.
– Desisti bem rápido – expliquei –, logo depois de topar com uma divagação sobre o que seria a representação de um não-gato sobre a mesa. Ou de um gato que esteve na mesa.
– Isso deve ser Husserl – afirmou ele, rindo.
Logo fomos envolvidos por uma atmosfera bem-humorada. Rir juntos é um afrodisíaco poderoso. Eu disse:
– Fico pensando se essa sua paixão por esse tipo de filósofo não foi o que acabou enfiando a promotoria pública na sua vida. Você parece gostar de coisas complicadas.
– Tenho que tomar cuidado com você – respondeu ele. – Mulher inteligente não é fácil.
O que ele estava me dizendo, naquele momento, é que de forma geral as mulheres são burras. Mas claro que, sob o efeito da sedução e envenenada pelos meus próprios hormônios, não me dei conta disso. Pior: inverti os sinais, transformei o negativo em positivo. Ele tinha uma tática eficiente de se transformar em protagonista, que consistia em usar a própria língua como um martelo para botar abaixo tudo ao redor.
Patrícia Melo
(Adaptado de Mulheres empilhadas. São Paulo: LeYa, 2019.)
Trágico vem do grego tragos, que quer dizer bode, um animal para o sacrifício. Trágico também remete ao panteão grego dos deuses e moiras, estas, as velhas quase cegas que tecem o tecido do destino dos mortais e dos deuses. De nós, mortais, esse destino diz que, ao final, pouco importam nossas virtudes ou vícios, pois seremos todos sacrificados: fracassaremos na vida porque morreremos, e o universo nos é indiferente. Somos o único animal que carrega o cadáver nas costas a vida inteira, isto é, que tem consciência da morte. Segundo o antropólogo Ernest Becker, em seu maravilhoso livro Negação da morte, tivemos que sobreviver à violência de dois meios ambientes: o externo, como todo animal, e o interno, nossa consciência prévia da inviabilidade da vida.
Quando a filosofia abandona o universo religioso grego trágico (embora muitos filósofos nunca o façam plenamente), esse destino violento e cego assume a forma da crença num Acaso cego como fundo da realidade, ou seja, não há qualquer providência divina que faça, ao final, qualquer sentido. Vagamos por um mundo indiferente, combatendo um combate inglório, sem reconhecimento cósmico. No mundo contemporâneo, por exemplo, a teoria darwinista abraçará essa visão sombria do destino de tudo que respira sobre a Terra.
Essa imagem de que tudo no fundo é acaso aparece, por exemplo, em autores como Maquiavel, em seu clássico O príncipe. Como todo autor de sua época, ele chama o Acaso cego de “Fortuna”. O outro conceito que ele trabalha é o de “Virtú” (tradução do termo grego “Aretê”, que significa virtude, força).
Quais são as características de “um príncipe virtuoso”? Ele observa o comportamento das pessoas e percebe que a maioria sempre é previsível, medrosa, interesseira e volúvel. A marca da vida é a precariedade, e isso horroriza as almas fracas. O medo é frequente, e o amor, raro. A traição, uma banalidade; a fidelidade, um milagre. Ele sabe que deve amar sua esposa (ou marido, se for uma “princesa”), mas confiar apenas em seu cavalo. E que deve antes ser temido do que amado, porque o amor cobra constantes provas e tem vida curta, enquanto o medo pede pouco alimento e tem vida longa. Acima de tudo, o virtuoso é um solitário porque é obrigado a viver num mundo devastado por uma consciência mais radical e mais violenta do que os outros mortais. Nesse universo é que ele tomará suas decisões. Não pode sonhar com um mundo que não existe, nem contar com pessoas que vivem de ilusões.
Ainda que vivamos em épocas dadas a papos furados como “humanismo em gestão empresarial”, é nesse mesmo universo que são tomadas as decisões de quem tem por destino ser responsável por muita gente e muitos lucros. Do “príncipe” atual, longamente exposto às fraquezas humanas, é exigida a dor da lucidez, do silêncio e da solidão. A crueldade do mundo é parte de seu café da manhã, e a efemeridade do sucesso é seu pesadelo cotidiano.
(Luiz Felipe Pondé, O trágico cotidiano. Disponível em: https://rae.fgv.br/sites/rae.fgv.br. Acesso em 28.06.2021. Adaptado)
Mesmo?
Há alguns anos, namorei um professor de Direito e procurador-geral da União (do tipo com mestrado, doutorado, pós-doutorado e mil especializações) cujo apreço pela língua portuguesa chegava a ser irritante até para mim. Não sei se por implicância ou por exibicionismo, esse homem, nos nossos momentos de brigas (que não eram poucos; afinal, éramos mais possessivos do que todos os pronomes possessivos juntos), tentava, de todas as formas, mostrar que dominava a última flor do Lácio, vulgo língua portuguesa, mais do que eu. E o que acontecia? Eu ficava tão irritada com a situação que sempre perdia no quesito argumentação.
Certa vez, após almoçarmos em uma tarde de sábado, ele foi para a minha casa. Enquanto esperávamos pelo elevador, eu comentei:
— Ainda chegará o dia em que todas essas placas de aviso de elevadores serão corrigidas. Aff!
— Oi?
— Você nunca reparou? “Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo se encontra parado neste andar. ”
— E daí?
— E daí que a palavra “mesmo” não pode retomar outra palavra, como elevador.
— Claro que pode! “Mesmo” é um pronome demonstrativo. Está demonstrando onde devemos ou não entrar.
— Realmente, “mesmo” pode atuar como pronome demonstrativo, mas ele retoma uma oração, não uma palavra, Maurício.
— Exemplo?
— Eu sou uma namorada fiel; por isso espero que o meu namorado faça o mesmo. Viu? Recupera-se, aí, a oração sobre fidelidade.
— Isso é uma indireta, Cíntia?
— Não, é direta mesmo.
— E esse “mesmo” de agora?
— É um advérbio com valor reforçativo, Maurício. Ele reforça quão galinha você é. O elevador chegou. Vamos.
— Mesmo? Hahaha...
— Não fuja do assunto. Estou cansada das suas ciscadas por aí.
Chegando, eu retirei as minhas roupas e coloquei um roupão. Ele tirou os sapatos, como quem mostra que vai ficar, mas recebeu um telefonema sei lá de quem e prontamente respondeu:
— Claro que vou. Em dez minutos estarei aí.
— Oi??? Você vai me deixar aqui mesmo?
— E esse “mesmo”?
— Equivale à palavra “realmente” e ao provável término do nosso namoro se você sair daqui.
Perguntei para ele de quem se tratava, mas Maurício desconversou. Disse que eu não conhecia a pessoa em questão, que ele precisava “dar uma passada” no tal lugar, que eu não iria gostar do barzinho, blá-blá-blá... E começou a ladainha linguisticamente ortodoxa comum aos discursos que ele ensaiava nas nossas brigas:
— Cíntia, eu sou um homem de conduta ilibada, de quem você não pode duvidar. E você é a mulher pela qual sou apaixonado. Você tem tudo quanto quer de mim e ainda assim sempre duvida dos lugares onde digo que estou.
— É mesmo? Fiquei lisonjeada...
— Esse “mesmo” foi irônico. Não admito ironias sobre a minha fidelidade.
— Maurício, você não me engana. Eu ouvi voz de mulher. Quem está lá? Quantas mulheres são? De onde é esse amigo misterioso do qual eu nunca ouvi falar? Aposto que é aniversário de mulher, por isso você não quer me levar. Não é? Você já estava distante na hora do almoço. Eu senti!
— Não me venha, Cíntia Chagas (ele sempre me chamava de Cíntia Chagas durante as brigas), com o seu discurso falacioso! Sou um namorado de cuja fidelidade você não pode duvidar. Quer saber? Vou embora. Passar bem. E saiu correndo do meu apartamento.
E eu saí correndo atrás dele, afinal de contas, ele tinha de me ouvir. Mas o caso é que eu estava de roupão e não me lembrei desse detalhe. Pois bem: vi-me de roupão, no meio da rua, brigando com o Senhor Sabe-Tudo. Cena de novela: atirei-me na frente do carro dele e disse:
— Daqui você não sai.
Ele, frio como um iceberg, respondeu:
— Só se você me disser que “mesmo” substitui palavra, que estou certo.
— Maurício, não me irrite! Já expliquei que “mesmo” não substitui palavra e ponto final.
— Ele, divertindo-se com a situação, disse:
— Então, como ficaria a placa do elevador, Rainha da Língua Portuguesa?
— “Antes de entrar no elevador, verifique se este se encontra parado neste andar”. Pronto, Maurício. Agora saia do carro. Os vizinhos já estão olhando. Não vê que estou de roupão?
— É mesmo? Coitadinha... Isso é para você aprender a não desconfiar de mim.
Deu ré e foi embora.
Então eu fiquei ali, na rua, de roupão, sem a chave do portão do prédio, à espera de um vizinho com quem eu pudesse contar.
E você, leitor, neste momento pergunta a si mesmo: mesmo? De roupão na rua?
Mesmo...
CHAGAS, Cíntia. Sou péssimo em português: chega de sofrimento! Aprenda as principais regras de português dando boas risadas. 1 ed. Rio de Janeiro: HarperColllins, 2018.
Analise os períodos abaixo quanto ao emprego da (s) palavra (s) em destaque:
I. A discussão foi vista pelos vizinhos, e os mesmos ficaram espantados.
II. Cíntia Chagas estava mesmo de roupão na rua.
III. De fato, foi Maurício mesmo quem começou a discussão.
IV. É isso mesmo!
De acordo com a gramática tradicional, o emprego da (s) palavra (s) destacada (s) está CORRETO em:
O ambiente vai ficar pesado
Finalmente, o mundo ganhou consciência da necessidade de agir rapidamente para evitar a degradação do ambiente e, por isso, tomou a medida mais drástica que se pode tomar – lançou, contra todos os que recusam reconhecer o problema das alterações climáticas, a força mais exasperante e destruidora da natureza, uma adolescente.
Sou pai de duas adolescentes e sei que não pode haver adversário político mais irritante, impertinente e respondão. Tenho sofrido muito nas mãos destas políticas engenhosas e implacáveis. Donald Trump não sabe onde se meteu.
A Greta não precisa convencê-lo de que o mundo caminha para a extinção. Cinco minutos de conversa com ela e não só ele passa a acreditar que o mundo vai mesmo acabar como vai desejar que acabe o mais depressa possível. A única vantagem de Donald Trump é que pode usar a estratégia infantil de tapar os ouvidos e gritar até a Greta ir embora. Mas é muito improvável que ela se canse primeiro do que ele.
Trump há de querer ir brincar e a Greta não deixa. Nem sequer o velho estratagema de a mandar para a escola para descansar um pouco resulta, porque agora a adolescente pode argumentar que gostaria muito de ir para a escola, mas não pode porque o mundo precisa dela. É xeque-mate.
Talvez este modelo de ativismo extraordinariamente eficaz possa ser usado para atacar todos os outros problemas do mundo. Sempre que for preciso comparecer a mesas de negociação, os sindicatos enviam um adolescente para discutir com o patronato. Os salários passam a se chamar mesada, e ele consegue um aumento de 50% só para se calar e pôr a música mais baixo.
Nas câmaras dos deputados, os líderes dos blocos parlamentares dos partidos da oposição passam a ser deputados de 14 anos cheios de vigor, irreverência e acne.
Conseguem fazer passar vários projetos de lei importantes a troco da promessa de irem almoçar na casa dos avós no domingo sem fazer cara feia e de limparem o quarto.
Creio que, completamente por acaso, talvez tenhamos descoberto a maneira de tornar o mundo melhor.
(Ricardo Araújo Pereira, Folha de S.Paulo, 29.10.2019. Adaptado.)
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