Banquete dos mendigos
Lindolfo Paoliello
As grandes cidades do Brasil de hoje, como Paris do século XIX, têm suas ruelas, seu mundo ____ as pontes (aqui se chamam viadutos), sua vida subterrânea.
Aqui, como lá, vivem nesse submundo criaturas que vagueiam pelas ruas, dormem ao relento, removem aqui e ali os monturos, latas de lixo, vivendo de dejetos da sociedade.
São seres que há muito tempo desceram da condição de pobreza para um outro patamar, onde se vive em estado habitual de privação dos bens necessários ____ vida.
A essas criaturas, Victor Hugo dedicou, há um século, um romance – Os miseráveis – onde as conceituou assim: “Esse querubim do enxurro possui às vezes uma camisa, mas nunca mais do que uma; possui às vezes um albergue a que consagra afeição, porque nele vive sua mãe, mas prefere a rua, porque vive nela a liberdade.”
Em uma rua de São Paulo, próxima ___ Praça da Sé, ligando as zonas Leste e Norte ao centro da cidade, fica o Viaduto do Glicério. É _____ suas marquises bolorentas e imundas que, ____quartas-feiras, se realiza o banquete dos mendigos.
Eles vêm _____ dezenas, catadores de papeis, pedintes, aleijados, e logo que se vão os consumidores da feira-livre, por volta do meio-dia, uma outra atividade começa a agitar ____ rua, que é a de recolher os restos para o preparo do banquete.
Logo vão sendo lançados ____ um velho tambor de gasolina, montado _______ uma grande fogueira, os ingredientes que cada um recolheu: carcaça de peixe, tomates, cenoura, vagens, sobras de carne, tudo mexido com uma concha improvisada com um cabo de vassoura.
Algum tempo depois, em meio ____ muita alegria, é servida a sopa que cheira a cebola e alho. Dela vão se servindo os mendigos em velhas latas de leite em pó. Sorvem-na com vontade, repetem, sabem que só na outra quarta-feira vão ter outra refeição como essa.
A muitos deles a sopa cheirosa e quente traz lembranças de uma outra vida. São antigas empregadas domésticas, operários desempregados, motoristas que se acidentaram.
Esses costumam sentar-se no meio-fio, após o banquete, e vão passar os olhos nos jornais que cataram na jornada da manhã.
Um repórter entrevistou alguns desses _________ brasileiros que vivem nos subterrâneos de São Paulo.
- Só o que está congelado neste país é a madrugada mesmo – falou um deles.
- Quando o governo diz que é aquilo, tem que ser aquilo – disse um outro.
- Devem parar de mentir para o povo – acrescentou o terceiro.
E detrás do repórter, cutucando timidamente o ombro, um dos comensais do banquete dos mendigos pediu licença para dar sua opinião:
- Olha, moço, a gente anda muito, sente na carne tudo o que aconteceu e, mesmo assim, a gente quer acreditar. Mas hoje em dia, eu vou dizer pra você uma coisa, torço para o Brasil como antigamente torcia para o Corinthians: com uma vontade danada de acreditar. Mas sabendo que têm umas coisas boas que nunca vão acontecer com a gente.
Leia, abaixo, o poema de João Cabral de Melo Neto:
Cemitério Pernambucano
(Nossa Senhora da Luz)
Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.
Marque a afirmação que não está correta:
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